Filippo Marinetti – entre o futurismo e o fascismo
Filippo Tommaso Marinetti nasceu no dia 22 de dezembro de 1876, na cidade de Alexandria, no norte Egito à margem do mar mediterrâneo. Segundo filho de pais italianos (o advogado piemontês Enrico Marinetti e Amalia Grolli, filha de um proeminente professor de literatura de Milão), Marinetti frequentou um colégio internacional administrado por jesuítas franceses e desenvolveu sua aptidão pela literatura e poesia ainda muito jovem, época em que escrevia exclusivamente em francês. Durante a adolescência, ainda no colégio, fundou a revista Le Papyrus: Revue bi-mensuelle littéraire, artistique, fantaisiste et mondaine onde publicou seus primeiros poemas. Nesse período, sua maior influência era o escritor francês Émile Zola. Em 1894 Marinetti foi enviado a Paris para concluir seus estudos na Sorbonne e em seguida mudou-se para Pávia, no norte da Itália – próximo a Milão – para estudar Direito atendendo aos anseios de seu pai. Graduou-se em 1899, mas nunca exerceu o ofício de advogado. Em vez disso, dedicou-se à poesia, à literatura e à música (MARINETTI, 2006).
Marinetti colaborou com inúmeros jornais e revistas de literatura, incluindo as famosas revistas La Plume, La Nouvelle Revue, Mercure de France, La Vogue, Vers et Prose entre outras, onde publicou parte de seus poemas, além de ensaios, artigos e criticas literárias. Sua poesia em versos livres, Les Vieux Marins, publicada em 1898, foi premiada no Samedis Populaires, evento organizado pelos poetas simbolistas Gustave Kahn e Catulle Mendès em Paris. Os textos desse período demonstram sua profunda convicção nos avanços da sociedade moderna que também ecoavam nas artes e na literatura. Muitos desses avanços ele presenciou durante sua estadia em Paris, mas em toda a Europa e também na Itália, ocorriam transformações significativas no estilo de vida da sociedade.
Na virada do século, a Itália recém unificada deixava de ser um país predominantemente agrário, abrindo as portas para o capitalismo industrial, promovendo a industrialização e a modernização das cidades, especialmente no norte. Milão se tornou a cidade dos bancos, das lojas de departamentos, dos teatros, cinemas e das casas de concertos. Edifícios tradicionais foram demolidos dando lugar a complexos viários, iluminação pública foi instalada por toda a cidade, veículos a motores substituíam as carroças e cavalos, enfim, o estilo de vida das grandes metrópoles floresceu também na Itália (Op. cit. p. 13).
Em 1902, ainda sob influência do simbolismo, Marinetti publicou seu primeiro livro, La Conquête des étoiles, um poema épico subdividido em dezenove cantos que narram uma guerra apocalíptica entre o mar e o céu. Dois anos depois publicou o poema lírico Destruction, onde clama pela desconstrução da realidade e do ideal. De antemão, Marinetti já ia à direção de suas estratégias características, impelindo os termos de uma polaridade a tais extremos que entrariam em colapso de volta á suas antíteses, uma manobra que lança a natureza da individualização, ou como nós traçamos distinções básicas entre figura e base, a própria pessoa e o mundo, em uma crise perene. Muitos dos primeiros trabalhos do poeta são repletos de uma retórica de violência extraordinária, carregados de elementos grotescos e macabros (RAINEY, 2009, p. 3).
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Durante a primeira década do séc. XX, o Caffè Savini, na Galleria Vittorio Emanuele no centro de Milão, tornou-se o ponto de encontro de intelectuais e artistas. Além de Marinetti, frequentavam também os artistas plásticos Carlo Carrà, Umberto Boccioni, Luigi Russolo (que também se dedicava a música), entre outros intelectuais da sociedade milanesa. Juntos eles desenvolveram uma nova filosofia artística, idealizada para estimular novas abordagens técnicas e estéticas, rompendo com o tradicionalismo enraizado de instituições e práticas decadentes. Proclamavam a falência cultural de uma nação que se agarrou ao passado e ignorou os grandes avanços do mundo moderno. Propunham nada menos do que revolucionar a vida e a sociedade em seus diferentes aspectos: moral, artístico, cultural, social, econômico e político.
Marinetti mantinha uma postura de liderança dentro do grupo, especialmente pela sua bem sucedida carreira como poeta, mas também por ter colaborado com inúmeras revistas e publicações importantes. Já era bastante influente no meio intelectual europeu e possuía excelentes conexões tanto na França como na Itália. Com a ajuda do Paxá Egípcio Mohammed El Rachi, amigo de seu pai e investidor do jornal francês Le Figaro, conseguiu publicar a Fundação Manifesto, que já vinha sendo divulgado em ensaios e artigos em diferentes jornais da Itália, na página principal do Le Figaro. Nos meses seguintes, a Fondazione e Manifesto del Futurismo causou um verdadeiro rebuliço na cena cultural europeia e italiana, inaugurando uma nova era nas artes e na literatura modernista e influenciando os movimentos de vanguarda posteriores (MARINETTI, 2006, p. 14).
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Marinetti ficou bastante entusiasmado com a eclosão da primeira guerra mundial e chegou a se voluntariar para uma batalha nas montanhas de Trentino, na fronteira da Itália com o Império Austro-húngaro, no outono de 1915. Após o final da guerra, Marinetti propõe a criação de um programa político de viés futurista e, em 1919, cria o Partido Político Futurista e funda o jornal Roma Futurista para disseminar seus ideais políticos. Suas ideias agradaram o futuro ditador Benito Mussolini, que incorporou muitos dos ideais políticos futuristas na elaboração do regime fascista.
O fascismo foi oficialmente fundado por Benito Mussolini e seus correligionários numa reunião realizada em 23 de março de 1919 na piazza San Sepolcro, em Milão. Marinetti era um dos presentes na reunião e, em pouco tempo, foi convidado para fazer parte do comitê central e do departamento de imprensa e propaganda do regime. No início, Marinetti foi um grande apoiador dos ideais fascistas e chegou a declarar que o regime representava uma extensão natural de seus anseios futuristas. Discursou ao lado de Mussolini e chegou a ser preso junto com ele e outros partidários em 1920. Entretanto, com a adoção de pautas cada vez mais reacionárias e conservadoras, além da postura imperialista de Mussolini, Marinetti se afastou das agendas do regime e voltou a se dedicar a literatura e a poesia. A ruptura ocorreu quando Marinetti renunciou a sua participação no comitê central, no início da déc. 1920 (RAINEY, 2009, p. 1-39).
O nacionalismo agressivo de Marinetti só reapareceu em outubro de 1935, quando ele foi como voluntário para a guerra de conquista italiana na Etiópia. Seu fascínio pela tecnologia e a guerra continuou a inspirar sua poesia. Em 1939 ele criou a poesia dei tecnicismi, que trouxe para linguagens artísticas e poéticas termos específicos da ciência e tecnologia, prática incomum até então. Em 1942 ele comemorou o êxito do Eixo nas batalhas da Segunda Guerra Mundial com sua poesia armata. Em 20 de julho de 1942 chegou a ingressar como voluntário na frente russa, mas retornou meses depois por motivos de saúde. Até sua morte, em 1944, Marinetti manteve ligações com Mussolini e o regime fascista, mas em vários momentos questionou os rumos e as consequências das medidas adotadas pelo Duce. Marinetti morreu no dia 2 de dezembro de 1944 de ataque cardíaco enquanto aguardava o visto de entrada para a Suíça, onde pretendia estabelecer residência. Mussolini ordenou um funeral de estado para o poeta, que foi realizado em Milão no dia 5 de dezembro daquele ano.
Marinetti deixou uma vasta obra, incluindo poesias, livros, artigos, críticas, ensaios e textos em geral sobre literatura, política, história, sociologia etc. Atuou como editor em diferentes revistas, fundou suas próprias revistas e periódicos, com destaque para a Rivista Poesia, de Milão. Ao longo da vida escreveu dezenas de manifestos para as artes e política e, embora sempre ligado ao regime fascista, apoiou e inspirou os movimentos socialistas e comunistas que surgiram na Itália no início da déc. 1920. Sua produção artística é considerada um marco do modernismo e influenciou gerações de artistas, poetas e músicos ao longo do séc. XX.
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Piero Gobetti, um jovem jornalista italiano, liberal e ferrenhamente antifascista, considerava o futurismo um precursor indispensável do fascismo, assim como o filósofo italiano Benedetto Croce, que escreveu que para qualquer um que possui senso de conexões históricas, “a origem do ideal fascista é realmente encontrada no futurismo […] que trouxe a ideia de que é preciso sair às ruas, impor sua perspectiva, calando a voz daqueles que não concordam […] o desejo de romper com todas as tradições […]” (CROCE, 1924, p. 239).
No entanto, outros autores, como o célebre jornalista, escritor e editor italiano Giuseppe Prezzolini, consideram o pensamento futurista muito mais próximo dos ideais bolcheviques, do que fascistas. Prezzolini escreveu em um ensaio que “as duas revoluções [bolchevique e o futurismo], ambas anti-históricas, sempre foram aliadas. Queriam destruir o passado, e reconstruir tudo em uma ordem industrial. As fábricas têm sido as fontes das ideias bolcheviques; e também foi a inspiração para o futurismo”, o jornalista conclui que o “fascismo não comporta o programa destrutivo do futurismo” (RAINEY, 2009, p. 33).
De qualquer forma, a presença visionária de Marinetti na cúpula do regime fascista proporcionou rupturas e o desenvolvimento de linguagens de vanguarda que não ocorreram na Alemanha nazista, ou na Rússia comunista, por exemplo. Sobre esse aspecto, o compositor Bruno Maderna comenta:
“[…] Antes da guerra, nós italianos não conhecíamos muito bem a música da Segunda Escola de Viena, mas mesmo assim, sabíamos mais do que os [compositores] alemães. De fato, Mussolini tinha um grande amigo, o futurista Marinetti; Mussolini por si só não era muito inteligente, mas ele escutava o suficiente [as ideias de] Marinetti, que o conduziu à modernidade e ao progresso em todas as artes. Sob esse aspecto, não estávamos completamente separados do resto da Europa; compositores como Dallapiccola e Petrassi, a geração antes de nós [Maderna, Nono e Berio], puderam conhecer a música de Bartok, Stravinsky, e dos Vienenses, certamente muito mais do que era possível para os alemães”. (FEARN, 1990, p. 300).
PARA SABER MAIS:
CROCE, Benedetto. Fatti politici e interpretazioni storiche. La critica 16, no. 6 (20 May 1924).
DALY, Selena. “The Futurist Mountains”: Filippo Tommaso Marinetti’s Experiences of Mountains Combat in the First World War. In Modern Italy. 2013.
FEARN, Raymond. Bruno Maderna. Chur: Harwood Academic Publishers, 1990.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Critical Writings. New York: Farrar, Straus and Giroux, LLC. 2006.
MARINETTI, Filippo Tommaso. La Conquête des Étoiles. Paris: E. Sansot & Co. 1902.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Destruction. Paris: L. Vanier Éditeur. 1904.
OHANA, David. The Futurist Syndrome. Eastbourne: Sussex Academic Press. 2010.
POGGI, Christine. Inventing Futurism: The Art and Politics of Artificial Optimism. Princeton: Princeton University Press. 2009.
RAINEY, Lawrence; POGGI, Christine; WITTMAN, Laura (Org.). Futurism an Anthology. New Haven & London: Yale University Press. 2009.
SOMIGLI, Luca. Legitimizing the Artist: Manifesto Writing and European Modernism, 1885-1915. Toronto: University of Toronto Press. 2003.
LINKS:
http://www.italianfuturism.org/manifestos/
https://www.academia.edu/2144169/The_Futurist_Mountains